terça-feira, 5 de janeiro de 2010

NAVIO NEGREIRO - TRAGÉDIA NO MAR


Rememorando as atrocidades cometidas contra a raça negra, especialmente contra africanos que foram escravizados miseravelmente, notadamente os que foram vítimas do tráfico para o Brasil, conforme relatamos em transcrições históricas posteriores, resolvemos transcrever também o poema do grande abolicionista brasileiro Castro Alves, sob o título de "NAVIO NEGREIRO - Tragédia no Mar". Embora seja uma poesia antiga e conhecida de muitos, também é uma obra desconhecida de grande parte da juventude, talvez por ter sido uma história que remonta à Séculos passados, e para muitas pessoas como terminada essa história nefanda com o advento da extinção da escravatura pela Lei Áurea, de 13 de Maio de 1888.

" 'Stamos em pleno mar... Doido no espaço

Brinca o luar --- douradas borboletas;

E as vagas após ele correm... cansam

Como turba de infantes inquieta.
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'Stamos em pleno mar... Do firmamento

Os astros saltam como espumas de ouro...

O mar em troca acende as ardentias,

--- Constelações do líquido tesouro...
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'Stamos em pleno mar... Dois infinitos

Ali se estreitam n'um abraço insano,

Azuis, dourados, plácidos, sublimes...

Qual dos dois é o Céu? qual o Oceano?...
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'Stamos em pleno mar... Abrindo as velas

Ao quente arfar das vibrações marinhas,

Veleiro brigue corre à flor dos mares,

Como roçam na vaga as andorinhas...
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Donde vem? onde vai? Das náus errantes

Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?

Neste Saára os corséis o pó levantam,

Galopam, voam, mas não deixam traço.
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Bem feliz quem alí pode nest'hora

Sentir deste painel a magestade!...

Embaixo--- o mar... em cima--- o firmamento...

E no mar e no céu--- a imensidade!
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Oh! qu doce harmonia traz-me a brisa!

Que música suave ao longe sôa!

Meu Deus! como é sublime um canto ardente

Pelas vagas sem fim boiando à tôa!
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Homens do mar! Ó rudes marinheiros,

Tostados pelo sol dos quatro mundos!

Crianças que procela acalentara

No berço destes pélagos profundos!
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Esperai... esperai!... deixai que eu beba

Esta selvagem, livre poesia...

Orquestra--- é o mar, que ruge pela prôa,

E o vento, que nas cordas assobia...
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Porque foges assim, barco ligeiro?

Porque foges do pávido poeta/

Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira

Que semelha no mar --- doido cometa!
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Albatrós! Albatrós! águia do oceano,

Tu que dormes das nuvens entre as gazas,

Sacode as penas, Leviatã do espaço,

Albatrós! Albatrós! dá-me estas asas.
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II-

Que importa do nauta o berço,

Donde é filho, qual seu lar?

Ama a cadência do verso

Que lhe ensina o velho mar!

Cantai! que a morte é divina?

Resvala o brigue à bolina

Como golfinho velós.

Presa ao mastro da mezena

Saudosa bandeira acena

às vagas que deixa após.
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Do espanhol as catilenas

Requebradas de langor.

Lembram as moças morenas,

As andaluzas em flor!

Da Itália o filho indolente

Canta Veneza dormente.

--- Terra de amor e traição,

Ou do golfo no regaço

Relembra os versos de Tasso

Junto às lavas do vulcão!
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O inglês--- marinheiro frio,

Que ao nascer no mar se achou

(Porque a Inglaterra é um navio

Que Deus na Mancha ancorou)

Rijo entôa pátrias glórias,

Lembrando, orgulhoso, histórias

De Nelson e de Aboukir.

O Francês --- predestinado ---

Canta os louros do passado

E os loureiros do porvir!
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Os marinheiros Helenos,

Que a vaga Ironia criou,

Belos piratas morenos

Do mar que Ulisses cortou,

Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara

Versos que Homero gemeu...

Nautas de todas as plagas,

Vós sabeis achar nas vagas

As melodias do céu!...

III -

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!

Desce mais... inda mais... não pode olhar humano

Como o teu mergulhar no brigue voador!

Mas que vejo eu alí... Que quadro d'amarguras!

É canto funeral!... Que tétricas figuras!...

Que cena infame e vil!... Meu Deus! meu Deus! que horror!

IV -

Era um sonho dantesco... o tombadilho

Que das luzernas avermelha o brilho,

Em sangue a se banhar.

Tinir de ferros... estalar de açoite...

Legiões de homens negros como a noite,

Horrendos a dançar...
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Negras mulheres, suspendendo às têtas

Magras crianças, cujas bocas pretas

Rega o sangue das mães:

Outras, moças, mas núas e espantadas,

No turbilhão de espetros arrastadas,

Em ânsia e mágoa vãs!
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E ri-se a orquestra, irônica, estridente...

E da ronda fantástica a serpente

Faz doidas espirais...

Se o velho arqueja, se no chão resvala,

Ouvem-se gritos... o chicote estala.

E voam mais e mais...
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Presa nos elos de uma só cadêia

A multidão faminta cambalêia,

E chora e dança alí!

Um de raiva delira, outro enloquece,

Outro, que de martírios embrutece,

Cantando, geme e ri!
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No entanto o capitão manda a manobra

E após fitando o céu que se desdobra

Tão puro sobre o mar, ---

Diz do fumo entre os densos nevoeiros:

"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!

Fazei-os mais dançar!..."
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E ri-se a orquestra irônica, estridente...

E da roda fantástica a serpente

Faz doidas espirais...

Qual n'um sonho dantesco as sombram voam!...

Gritos, ais, maldições, preces ressoam!

E ri-se Satanás!...
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Senhor Deus dos degraçados!

Dizei-me vós, Senhor Deus!

Se é loucura... se é verdade

Tanto horror perante os céus?!

Ó mar, porque não apagas

Co'a esponja de tuas vagas

Do teu manto este borrão?...

Astros! noite! tempestades!

Rolai das imensidades!

Varrei os mares, tufão!
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Quem são estes desgraçados!

Que não se encontram em vós,

Mais que o rir calmo da turba

Que excita a fúria do algós?

Quem são? Se a estrela se cala,

Se a vaga à pressa resvala

Como um cúmplice fugás,

Perante a noite confusa...

Dize-o tu, severa Musa,

Musa libérrima, audás!...
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São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.

Onde vive em campo aberto

A tribo dos homens nús...

São os guerreiros ousados

Que com os tigres mosqueados

Combatem na solidão.

Ontem simples, fortes, bravos...

Hoje míseros escravos,

Sem luz, sem ar, sem razão...
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São mulheres desgraçadas,

Como Agar o foi também.

Que sedentas, alquebradas,

De longe... bem longe vêm...

Trazendo com tíbios passos,

Filhos e algemas nos braços,

N'alma--- lágrimas e fel...

Como Agar sofrendo tanto,

Que nem o leite de pranto

Têm que dar para Ismael.
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Lá nas arêias infindas,

Das palmeiras no país,

Nasceram --- crianças lindas,

Viveram --- moças gentís...

Passa um dia a caravana,

Quando a virgem na cabana

Cisma da noite nos véus...

...Adeus, ó choça do monte,

...Adeus, palmeiras da fonte!...

...Adeus, amores... adeus!...
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Depois, o areial extenso...

Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso

Desertos... desertos só...

E a fome, o cansaço, a sêde...

Ai! quanto infeliz que cede,

E cai p'ra não mais s'erguer!...

Vaga um lugar na cadeia,

Mas o chacal sôbre a arêia

Acha um corpo que roer.
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Ontem a Serra Leôa,

A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à tôa

Sob as tendas d"amplidão!

Hoje... o porão negro, fundo,

Infecto, apertado, imundo,

Tendo a peste por jaguar...

E o sono sempre cortado

Pelo arranco de um finado,

E o baque de um corpo ao mar...
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Ontem plena liberdade,

A vontade por poder...

Hoje... cúm'lo de maldade,

Nem são livres p'ra morrer...

Prende-os a mesma corrente

--- Férrea, lúgubre serpente---

Nas roscas de escravidão.

E assim zombando da morte,

Dança a lúgubre coorte

Ao som do açoite... Irrisão!...
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Senhor Deus dos desgraçados!

Dizei-me vós Senhor Deus,

Se eu deliro... ou se é verdade

Tanto horror perante os céus?!...

Ó mar, porque não apagas

Co'a esponja de tuas vagas

Do teu manto este borrâo?

Astros! noites! tempestades!

Rolai das imensidades!

Varrei os mares, tufão!...
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VI -

Existe um povo que a bandeira empresta

P'ra cobrir tanta infãmia e cobardia!...

E deixa-a transformar-se nessa festa

Em manto impuro de bacante fria!...

Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,

Que impudente na gávea tripudia?

Silêncio, Musa... chora, e chora tanto

Que o pavilhão se lave no teu pranto!...
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Auri-verde pendão de minha terra,

Que a brisa do Brasil beija e balança,

Estandarte que a luz do sol encerra

E as promessas divinas da esperança...

Tu que, da liberdade após a guerra,

Fôste hasteado dos heróis na lança,

Antes te houvessem rôto na batalha,

Que servires a um povo de mortalha!...
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Fatalidade atrós que a mente esmaga!

Extingue nesta hora o brigue imundo

O trilho que Colombo abriu nas vagas,

Como um íris no pélago profundo!

Mas é infãmia de mais... Da etérea plaga

Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!

Andrada! arranca esse pendão dos ares!

Colombo fecha a porta dos teus mares!"

São Paulo, 18 de abril de 1868 - CASTRO ALVES

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