quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

VIDA E MORTE DE UM MÉDICO BREJENSE





Numa obra relativamente simples, um descendente de tradicional família do Brejo da Madre de Deus -PE, no caso Juarez de Queiroz Campos, escreveu e fez editar o livro "BIOGRAFIA DE JOÃO NINGUÉM", publicado em 1985, onde registra fatos verdadeiramente históricos da sua terra, que se não fossem revelados morreriam sem passar pelos anais do Brejo da Madre de deus. O exemplar que possuo me foi ofertado pelo amigo-irmão Jornalista José do Patrocínio Oliveira, com a seguinte dedicatória:


"Fé de ofício---

Juarez é do Brejo da Madre de Deus, filho de Sebastião Campos, irmão de Wilson Campos (já falecidos) e de outras figuras da política nacional. Merece ser lido. Recife, janeiro de 2002."


O livro é como se fosse um diário da saga de uma criança e um cidadão do povo, com que presdistinado a servir e a ser "castigado" por "espírito sem luz", por bandidos impiedosos e covardes. Achei por bem transcrever parte do item 9. Toda timidez será castigada, páginas 141/144 do citado livro, não por ser a parte mais triste, mas, talvez a que mais precise de uma reflexão sobre a trajetória da vida humana. Os mistérios, o inesperado, o incógnito, vejamos:


" Fechou o vidro. O frio continuou. Ao passar em frente à casa de Gabriela, teve um sobressalto, lmebrou o compromisso do dia seguinte, Deverá aguardar um telefonema. Há três dias saíra de casa e nem ao menos se lembrara de telefonar para Geni. Não era hábito, mas nem sequer se lembrara dela, nos momentos der solidão.As duas crianças eram o encanto da sua vida. Não conseuiu esconder uma certa repulsa pelo Júnior, mongolismo bem evidente, sequer aprendera a falar. Certa ocasião, quisera levá-lo para São Paulo, consultar um especialista de renome, mas os pediatras e neurologistas do Recife foram taxativos: pura perda de tempo, de bada adiantaria.


Geni aceitava tudo sem reclamar. Muito religiosa, atribuia os infortúnios à vontade divina. O menino tinha babá permanente.


Por que nascera mongolóide? Geni era filha única e desconhecia qualquer caso na família. Não havia casamentos consanguíneos. Na sua, também não. O pai, de Escada, a mãe, de Catende, sem qualquer traço de parentesco. Um problema genético. E daí? Mesmo sendo médico, sabia que toda causa não identificada era jogada à vala genética.


De repente, começou a sentir saudades de casa. Sua respeitabilidade, a língua dos outros... Que não dirá o Paulo Gordo, depois de tê-lo surpreendido com a Gabriela na Boate? Ela sempre fora uma menina direita. Não seria agora, só porque saíra com ele, que iria ficar falada.


Gostava mesmo dela e nunca procurava enganar-se. Sua timidez é que lhe tirara coragem para insistir contra a vontade do pai dela. Também de que iria adiantar? Se o pastor apertasse, não teria condição de casar.


Não havia masi ninguém no saguão do hotel. Subiu para o quarto. Será que valia à pena esperar pelo telefonema? Reiniciar um romance, de nada adiantaria. Apenas prejudicaria a moça. Bonita, bem formada, bem orientada profissional e financeiramente, quando quizesse encontraria alguém livre e em condições de fazê-la feliz. Ele é que jamais o conseguiria, mutilando sua vida e arruinando a dela. Seus pais não aceitariam a idéia.


Geni, tão leal, tão dependente, tão honesta, naquela pureza ingênua, quase infantil, não merecia tal retribuição. E os filhos, principalemnte Júnior, uma cruz de toda a vida? As gêmeas, sabidas, inteligentes, também não teriam condições de receber Gabriela como segunda mãe.


Ela pr´pria era uma incógnita. Delicada, afetuosa, sensual, seria tudo isso permanente ou fora uma efusão de entusiasmo pelo inesperado, pelo gosto da aventura?


Não estava mais em idade para sonhos. A sua união tinha que ser estável, permanente. Era monógamo por formação e temperamento. Nunca teria duas mulheres. Geni ou Gabriela?


No momento, estava sob a influência de Gabriela, o sonho. Diante de Geni, enfrentará a realidade, a família estável medíocre, monogama. Se permanecesse perto daquela. que lhe restaurava e completava a juventude, eliminando a maior frustação do seu passado, que seria? O contacto feliz, sem obrigações, as mesmas idéias, aspirações, preferências, fariam crscer a amizade. a dependência emocional, a comunhão espiritual. Cada vez estaria mais preso a uma aventura. E o que poderia restar do seu casamento? A mulher, triste e conformada, agarrada aos filhos como tábua de salvação.


Gabriela não era o tipo de mulhar de programa. Seu rosto refletia sinceridade a exigir reciprocidade. E ele iria corresponder-lhe com um afeto dividido? Impossível.


Tomou uma decisão. Para ele no momento dolorosa e heróica. Pagaria a conta do Hotel e apanharia o ônibus de Caruaru, onde alugaria um carro de praça que o levasse à casa, no Brejo, o seu mundo medíocre e respeitável, sem grandes alegrias nem maiores surpresas, o dia cheio de trabalho, obrigações cumpridas rigorosamente. Serões à noite, os filhos dormindo, os dois assistindo programas de TV, ou lendo os jornais do Recife, um tomance qualquer, uma revista médica. Os pequenos mexericos da cidade, as miúdas manobras políticas.


As crisanças ficariam contentes com a chegada e Geni muito feliz. com um riso raro e um beijo doce. lhe daria as boas vindas. Também se afastaria e o esquecimento voltaria.


Lá fora, a chuva caía um pouco forte. Olhou o relógio de pulso: meia-noite. Havia ônibus de hora em hora. Preparou as malas. Ligou para a portaria, para chamar um carro. Antes, pendsara em discar para Gabriela. Dizer adeus? Pedir desculpas por tudo o que aontecera? Marcar novoencontro? Não. O melhor seria um bilhete. Pegou o caderno de receituário e escreveu:


"Gabi,

são 12:15 da noite.


Pensei bem e resolvi ir embora.


Peço-lhe milhões de desculpas por tudo que acontecera. Preciso pensar um pouco. Você é muito importante para mim, mas as circunstâncias não ajudam. Tenho ceteza de que você saberá compreender. Preciso reencontrá-la um dia em condições mas favoráveis.


Uma coisa só, que deixar escrito aqui: nesses dois dias passei os melhores momentos de minha vida e acredito mesmo que valeram por toda minha existência.


Seu sempre


João."


Desceu com a mala na mão, pagou a conta e chamou o porteiro:


--- Se alguém me procurar amanhã, pergunte se é a Dra. Gabriela, Se for ela mesma, entregue-lhe este bilhete.


Junto com o envelope, uma nota de dez cruzeiros.


--- Obrigado doutor. Está bem. Pode deixar. Boa noite.


Nem se lembrou de perguntar se haviam conseguido o táxi pedido. Na frente do hotel, não havia nenhum. Afinal, a Estação Rodoviária não ficava tão longe. Praça da Independência, Duque de Caxias, Rua da Penha, contornaria o Mercado, entraria na Rua do Apolo e dali para o Cais de Santa Rita seria um salto. Tomaria o ônibus de uma hora e chegaria no máximo às cinco horas em casa. Faria uma surpresa. Esquecera de comprar os presentes de praxe. Compraria chocolates na Rodoviária de Caruaru. Nenhum táxi no trajeto. As ruas desertas, sem luar. Contornou o Mercado. Tudo às escuras. Não conseguia enxergar bem. Apressou os passos.


Ao encaminhar-se para a Rua do Apolo, sem um poste aceso, foi esbarrado por um deconhecido.


--- "Tem fogo?"


--- Não, não fumo.


--- Então, passe a carteira e a mala.


O brilho prateado de uma peixeira fez João recuar. Usando a mala como arma, contra a mão que empunhava a faca, conseguiu desarmar o assaltante. Quando parecia livre, um outro homem surgiu-lhe por trás e acertou-lhe a cabeça com uma barra de ferro. Foi o bastante. Um golpe só, corpo inerte, sem vida.


Depressa, os assaltantes tiraram-lhe o paletó, a gravata, as calças, a camisa, documentos, dinheiro, relógio e nem a aliança foi poupada.


Sumiram, em dez minutos.


Na calçada da Rua do Apolo, um corpo semi-nú, a cabeça deformada, o sangue coalhando em tomo. Fora o Dr. João Leandro da Silva, João do Brejo, para os amigos, Joãozinho para a sua mãe. João Ninguém, para a posteridade.

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